O Purana Imaculado
“Aqui na Índia, para ser reconhecido como um pandita (erudito no conhecimento védico), é condição sine qua non conhecer bem o Srimad-Bhagavatam”, disse-me uma vez um amigo meu, indiano, supererudito nas escrituras, Ph.D. em sânscrito e um dedicado devoto de Krishna. Esse dado, por si só, já demonstra a excelência desse livro transcendental.
Para os Shankaristas, somente a literatura sruti deve ser tomada como referência para se entender a realidade. Mesmo assim, toda a seção karma-kanda (ritualística) dos Vedas deve ser descartada e somente a seção jñana-kanda (os Upanishads) deve ser levada em consideração. Segundo essa tradição, os pramanas resumem-se no prasthana-traya, as três principais referências dos shastras, que se apresentam na seguinte ordem de importância: 1. Os dez Upanishads comentados por Shankaracharya, a saber, por ordem de importância: Brhad-aranyaka, Chandogya, Taittiriya, Atareya, Mandukya, Mundaka, Prashna, Kena, Katha e Isha Upanishads; 2. Os Vedanta–sutras (ou Brahma-sutras) de Badarayana (outro nome de Vyasadeva); e, em terceiro lugar, o famoso Bhagavad-gita, que contém as instruções de Sri Krishna a Arjuna. O Srimad-Bhagavatam está, portanto, fora dessa lista. Interessante notar que o Bhagavad-gita, mesmo sendo um smrti, pois se trata de um capítulo do épico Mahabharata e pertence à classe de literatura chamada itihasa, ganhou um lugar no prasthana-traya, certamente devido à sua inegável fama. Seria talvez um desprestígio desmerecê-lo.
A metodologia empregada para a exegese Advaita Vedanta prescreve uma hierarquia entre os três prasthanas. As instruções e informações contidas nos Upanishads são consideradas nesse sistema como a palavra final. Caso uma das assertivas dos Upanishads seja contraditada nos outros dois prasthanas, a saber, Vedanta-sutras e Bhagavad-gita, o que prevalece é o conceito emitido no primeiro prasthana. Mesmo dentro da lista dos dez Upanishads comentados por Shankara, existe uma gradação de importância. Dentro desse sistema, as instruções de Krishna no Bhagavad-gita, instruções essas sagradas para os devotos, são assim relativizadas, o que é motivo de desgosto aos devotos vaishnavas. Todo o conceito de bhakti explicado por Sri Krishna, de forma explícita e irrefutável, pode ser, dessa maneira, distorcido e adulterado, e posto a serviço da filosofia mayavadi. Nessa filosofia impersonalista, Krishna, como Purushottama, é ofuscado pela ideia de um Brahman abstrato que seria nirguna, nirvishesha, nirakara, em suma, sem atributos.
Os doze cantos do Srimad-Bhagavatam em relação à forma pessoal do Supremo, Krishna.
Por outro lado, o Srimad-Bhagavatam é Krishna do princípio ao fim. É um livro totalmente transcendental, pois, conforme está enunciado em sua introdução, ele rejeita o dharma secular e concentra-se exclusivamente no summum bonum, o bem último, a autorrealização espiritual. É bhakti do princípio ao fim. Suas lilas eternas e Seus ensinamentos intemporais, recebidos diretamente da boca de Krishna (Uddhava-gita, no décimo primeiro canto) ou através de personalidades divinas ou almas autorrealizadas, como Kapiladeva, Shukadeva, Prahlada e outros tantos, constituem o cerne dessa grandiosa escritura sagrada. É, portanto, uma literatura eminentemente teísta. Para aqueles que querem apreciar as qualidades divinas de Deus, é, sem dúvida, a melhor referência.
Apesar do desdém que os mayavadis dispensam aos puranas em geral, o Srimad–Bhagavatam foi objeto de apreciação da parte de Shankaracharya em sua composição Govindastakam. Ele glorificou tanto Sri Krishna quanto o livro que descreve Suas lilas eternas. Em um dos seus oito famosos versos de dezenove sílabas, ele assim se expressa: “Por favor, prosta-te diante de Govinda. Ele é o reservatório de todas as qualidades adoráveis. Todas as pessoas santas adoram Seus misericordiosos pés de lótus dentro de seus corações. Ele é meu Senhor adorável. Todos os semideuses, assim como Srimati Vrindadevi, adoram-nO na terra de Vrindavana. Seu puro e belo sorriso emana bem-aventurança, como a flor kunda jorra néctar. Ele infunde êxtase transcendental aos Seus amiguinhos vaqueiros”.
Os doze cantos do Srimad-Bhagavatam em relação à forma pessoal do Supremo, Krishna.
Por outro lado, o Srimad-Bhagavatam é Krishna do princípio ao fim. É um livro totalmente transcendental, pois, conforme está enunciado em sua introdução, ele rejeita o dharma secular e concentra-se exclusivamente no summum bonum, o bem último, a autorrealização espiritual. É bhakti do princípio ao fim. Suas lilas eternas e Seus ensinamentos intemporais, recebidos diretamente da boca de Krishna (Uddhava-gita, no décimo primeiro canto) ou através de personalidades divinas ou almas autorrealizadas, como Kapiladeva, Shukadeva, Prahlada e outros tantos, constituem o cerne dessa grandiosa escritura sagrada. É, portanto, uma literatura eminentemente teísta. Para aqueles que querem apreciar as qualidades divinas de Deus, é, sem dúvida, a melhor referência.
Apesar do desdém que os mayavadis dispensam aos puranas em geral, o Srimad–Bhagavatam foi objeto de apreciação da parte de Shankaracharya em sua composição Govindastakam. Ele glorificou tanto Sri Krishna quanto o livro que descreve Suas lilas eternas. Em um dos seus oito famosos versos de dezenove sílabas, ele assim se expressa: “Por favor, prosta-te diante de Govinda. Ele é o reservatório de todas as qualidades adoráveis. Todas as pessoas santas adoram Seus misericordiosos pés de lótus dentro de seus corações. Ele é meu Senhor adorável. Todos os semideuses, assim como Srimati Vrindadevi, adoram-nO na terra de Vrindavana. Seu puro e belo sorriso emana bem-aventurança, como a flor kunda jorra néctar. Ele infunde êxtase transcendental aos Seus amiguinhos vaqueiros”.
A devoção de Shankara por Govinda.
Outra incursão de Shankaracharya no terreno do teísmo foi seu inusitado e famosíssimo verso Bhaja Govindam. Conta-se que ele caminhava pelas ruelas de Varanasi com seus discípulos e, ao ver um professor ensinando regras gramaticais de sânscrito a seus alunos com uma didática muito mecânica e repetitiva, inspirou-se para compor vários versos cujo estribilho se tornou muito famoso. Shankara chama de mudhas, tolos, aqueles que, em vez de adorar Govinda, ficam encantados e distraídos com a erudição seca. Ele disse jocosamente: “O que vai adiantar saber todas as regras gramaticais para conjugar a raiz verbal [du]kr[n], karane, da oitava conjugação? Isso não vai te proteger na hora da morte. Adora Govinda! Adora Govinda! Adora Govinda!” (Como em português, a conjugação do dhatu “kr”, significando “fazer”, é totalmente irregular e cheia de exceções).
Por cerca de trezentos anos, Shankara reinou absoluto no cenário do sistema Vedanta com seu Shariraka-bhashya, o comentário dos Vedanta-sutras, que propõe o monismo Advaita. A reação vaishnava veio de Ramanuja em seu Sri-bhashya, estabelecendo a visão teísta da linha filosófica Vishishta-advaita Vedanta. Cem anos mais tarde, outro grande filósofo vaishnava, Madhva, apresentou outra versão, desta vez uma visão dualista, a filosofia Dvaita. Grandes debates filosóficos ocorreram nesse período. Tanto Ramanuja quanto Madhva tiveram que “lutar com as mesmas armas” usadas por Shankara e seus sucessores para impor o ponto de vista vaishnava no contexto do sistema Vedanta. Até então, a metodologia empregada para se estabelecer, com base nos shastras, os conceitos dos três elementos básicos do sistema de Vedanta, a saber, a entidade viva, esse mundo material e a Transcendência, e as relações entre esses princípios, era exclusiva e obrigatoriamente baseada nas esotéricas assertivas dos Upanishads e nos enigmáticos e sucintos aforismos dos sutras. Os eruditos se perdiam nos labirintos das conclusões shastricas, enquanto o acesso a essas verdades era inacessível para as pessoas comuns.
Caitanya Mahaprabhu pregando.
Mais tarde, Sri Caitanya Mahaprabhu inaugurou uma nova era vaishnava e rompeu com essa metodologia fundamentada na tradição do prasthana-traya. Ele enfaticamente sugeria a todos nestes termos: “Não percam tempo com o tecnicismo árido dos Upanishads e Vedanta-sutra. Vão direto para o néctar, o Srimad-Bhagavatam”. Essa abertura democratizou o conhecimento das escrituras e trouxe um grande alívio e ânimo novo para todos os vaishnavas. Sri Caitanya afirmava: “Para que perder tempo em comentar o Vedanta-sutra? O próprio autor, Vyasadeva, já revelou todo o seu conteúdo esotérico no Srimad-Bhagavatam”.
transcendental, renúncia e devoção. Qualquer um que tenta seriamente entender o Srimad-Bhagavatam, que propriamente o ouve e canta com devoção, torna-se completamente liberado” (SB 12.13.18).
O tesouro maior do Srimad-Bhagavatam é o fato de revelar os aspectos mais confidenciais de Sri Krishna, a Suprema Personalidade de Deus, e Seus associados eternos no mundo espiritual. Tem o poder de estabelecer a consciência de Krishna no coração do devoto, mesmo em meio a tantas influências mundanas dessa civilização mal dirigida.
O texto declara que, embora Krishna não esteja mais presente neste mundo, Ele, que estabeleceu o dharma e o conhecimento transcendental no seio da sociedade humana, está presente agora, em plena Kali-yuga, na forma do Srimad-Bhagavatam, o purana brilhante como o Sol, e tem o poder de remover toda a ignorância e a ansiedade material.
krsne sva-dhamopagate dharma-jnanadibhih saha
kalau nasta-drsam esa puranarko ’dhunoditah
(Srimad-Bhagavatam 1.3.43)
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